Por Iria Zanoni Gomes, socióloga
Entrevista à Revista Diocesana Catedral – Cascavel/PR – ano XX – No. 176 – fev./mar. – 2011
AS DESIGUALDADES SOCIAIS E OS DESASTRES AMBIENTAIS
Revista - As desigualdades sociais, presentes no Brasil, podem colaborar para o acontecimento de desastres ambientais, pois a questão ambiental não é somente técnica, na visão de que nós somos parte pensante na natureza. Em sua opinião, por que isso acontece?
Iria - Penso que a questão colocada exige um reparo. As desigualdades sociais não colaboram nem determinam a ocorrência de desastres ambientais. Pensar assim é separar as desigualdades sociais, entendidas aqui como econômicas e sociais, da questão ambiental. Na visão de que somos parte pensante da natureza, não é possível separar o social do ambiental. Ambos devem ser pensados dentro da lógica capitalista para que possamos entendê-los. A destruição da natureza caminha junto com as desigualdades sociais, com a injustiça social, porque a lógica capitalista, do lucro, da ganância, da exploração, destrói tanto a natureza quanto os seres humanos. Portanto, não são as desigualdades sociais que são responsáveis pelos desastres ambientais, mas é a lógica capitalista que gera tanto um quanto outro.
REDUZIR O CONSUMO É MAIS IMPORTANTE
Revista - É preciso encarar a realidade e admitir que a vontade de salvar o mundo, caminha, passo a passo, com o desejo de consumir. Tão importante quanto o estímulo à reciclagem, seria também importante o incentivo à redução do consumo?
Iria - Pode-se dizer que há uma contradição entre o desejo de salvar o mundo e o padrão de produção e consumo vigente na nossa sociedade. Quando se propõe o "desenvolvimento sustentável", se pensa em estabelecer limites e atitudes para assegurar a vida no planeta através da preservação dos recursos naturais e do melhoramento da qualidade de vida das populações. Ora, a noção de recursos naturais implica exploração, o que é coerente com o conceito de desenvolvimento, mas incompatível com o conceito de sustentabilidade, pois "desenvolvimento" tem sido entendido como crescimento, exploração de recursos (naturais e humanos), enquanto o termo "sustentável", tomando emprestada a definição de Fritjof Capra, significa a capacidade de satisfazer as nossas necessidades e aspirações sem diminuir as oportunidades das gerações futuras. Portanto, o modo de produzir e consumir vigente na sociedade capitalista é insustentável, pois destrói os recursos naturais (água, florestas, biodiversidade), polui a biosfera, gera um volume de lixo acima das possibilidades do planeta de reciclar, desertifica extensas áreas, cria desigualdades sociais, extermina populações etc. Portanto, a reciclagem é necessária, mas não é suficiente para resolver a questão do excesso de lixo produzido na sociedade contemporânea. A sustentabilidade exigiria, sim, reduzir o consumo. Mas, podemos nos perguntar se isso seria possível sem mudança no estilo de vida, nos valores vigentes que a subjetividade capitalista impõe.
O SENTIDO DE PERTENCIMENTO É IMPRESCINDÍVEL, MAS IMPENSÁVEL NA ÓTICA CAPITALISTA
Revista - A senhora acha que falta ainda a sociedade entender que a questão ambiental não é apenas ideológica, mas de atitude? Qual seria a dificuldade das pessoas assumirem um compromisso na preservação dos recursos naturais?
Iria - Quando se fala hoje em crise ecológica, não se está apenas fazendo referência à questão ambiental. Está se falando da crise do sistema capitalista, cujo modo de produzir e consumir transformou a vida no planeta insustentável, seja do ponto de vista pessoal, social ou da natureza. Portanto, para que ocorresse uma mudança de atitude em relação à necessidade de preservar a natureza seria necessário que a organização social e a nossa relação com a natureza fossem transformadas. Isso exigiria uma mudança de consciência no sentido de perceber a nossa interação e participação na construção da realidade em que vivemos. Um sentido de pertencimento nos permitiria sermos éticos, compromissados, responsáveis, conscientes das consequências das nossas escolhas. Isso é impensável na ótica capitalista.
UMA ESCOLHA POLÍTICA, MAS NÃO A POLÍTICA DOS PARTIDOS
Revista - A senhora afirmou em seu artigo "Desenvolvimento Sustentável: mito, contradição, paradigma e percepção" que transformar a nossa relação com a natureza é muito mais uma escolha política do que econômica. De que forma podemos entender isso?
Iria - Penso que essa pergunta é uma continuidade da anterior. Eu disse, em meu artigo, que a transformação da organização social e da nossa relação com a natureza era necessária para construir uma vida sustentável em nosso planeta e que isto implicava em escolhas políticas mais do que econômicas, como também a construção de uma nova percepção de mundo, novos valores, atitudes, estilos de vida, uma nova consciência. Em primeiro lugar, quero deixar claro que quando falo em política não estou me referindo à política partidária nem ao poder concentrado no Estado, que é inerente a esse tipo de política. Estou me referindo ao entendimento de que todas as nossas escolhas são políticas e estão relacionadas à nossa percepção de mundo, valores, atitudes, forma de interação com a vida em todas as suas dimensões. Ora, tudo isso expressa uma determinada maneira de ser e de fazer, o que está ligado à percepção. Capra fala que vivemos hoje uma crise de percepção. É possível pensar que mais do que uma crise econômica, viveríamos hoje uma crise política, no sentido de que depende da humanidade a escolha de novos caminhos para continuarmos a viver neste planeta?
O DESENCANTAMENTO DO MUNDO
Revista - No mesmo artigo, a senhora se refere ao "desencantamento do mundo" como um processo que se realiza na lógica da economia capitalista. Podemos dizer que desde que uma criança nasce, cercada pela busca do rápido e do prático, a sensibilidade em relação à natureza fica comprometida?
Iria - O "desencantamento do mundo", no sentido weberiano, nasce com a ciência clássica e expressa o projeto da modernidade, assentado no primado da razão, da ética do trabalho, da fé no futuro e no progresso tecnológico, da eficiência técnica, na primazia do conhecimento científico em detrimento de qualquer outro tipo de conhecimento e se realizou plenamente na lógica da economia capitalista. Criou um mundo onde o sensível, o gosto, o mágico, o religioso, a intuição foram alijados, separando o homem da natureza, o que o tornou um estranho ao seu ambiente. Quando a criança nasce encontra um mundo ao qual ela precisa se adaptar. A essa adaptação chamamos de processo de socialização. Num primeiro momento, a socialização se dá na família. É ali onde ela aprende as primeiras regras, normas, padrões vigentes na sociedade em que nasceu. Num segundo momento, a socialização se dá na escola. Em princípio, poderíamos dizer que a escola é uma continuidade da família. Na escola a criança vai completar o processo iniciado na família se preparando para a inserção na sociedade, principalmente através do trabalho. Existem ainda outros processos de socialização coletivos: grupos religiosos, de lazer, esportivos, por faixa etária etc. Ora, a socialização é o processo em que a criança interioriza a visão de mundo da sociedade em que nasceu o que significa não apenas uma determinada maneira de ver, mas de fazer. Quando você afirma que a sensibilidade em relação à natureza fica comprometida, você tem razão na medida em que a natureza na sociedade capitalista é considerada apenas um recurso natural a ser explorado e não um bem sagrado a ser preservado.
O CAPITALISMO CAUSA "ESTRANHEZA" ENTRE AS PESSOAS
Revista - Compromete também as relações sociais, já que no capitalismo a busca do lucro diminui a percepção das pessoas umas com as outras, surgindo uma exploração dos homens entre si?
Iria - Marx mostra muito bem como no modo de produção capitalista o produto do trabalho humano, a mercadoria, faz com que as relações entre os que produzem as mercadorias assumam a forma de relação social entre coisas e não entre produtores. Como neste modo de produção o dinheiro é a forma acabada da mercadoria, é ele que dissimula, encobre o caráter social do trabalho, do produto do trabalho, enfim, de todas as relações sociais. Quando você se refere à busca do lucro como um elemento que diminui a percepção das pessoas umas com as outras, eu diria que a busca do lucro é uma das expressões da coisificação das relações sociais, um dos valores da subjetividade capitalista, que expressa o estranhamento dos produtores não apenas em relação ao produto do seu trabalho, mas em relação a si mesmos, aos outros homens e à natureza. Talvez pudéssemos afirmar que o modelo de desenvolvimento capitalista, que hoje é mundial e integrado, cujos valores são o lucro, a ganância, a acumulação material, a exploração, a espoliação, destrói tanto a natureza quanto os homens entre si.
ALÉM DE EDUCAÇÃO ÉTICA E AMBIENTAL NAS ESCOLAS....
Revista - Que tipo de trabalho pode ser desenvolvido nas escolas para uma formação mais consciente a respeito da vida? Isso pode contribuir com a construção de novos valores?
Iria - Entendendo a escola como um instrumento de socialização dos indivíduos, ela adquiriu na nossa sociedade um status privilegiado de introdução do homem ao mundo do trabalho, o que se dá através da transmissão de conhecimento, pois se entende que este se adquire, se possui. Numa sociedade onde tudo gira em torno do mercado e da mercadoria, ter conhecimento e controlá-lo significa ter poder. Foucault nos presenteou com suas sábias reflexões a respeito da relação entre saber e poder que não cabe aqui discutir. Ao invés de preparar o indivíduo para a vida, de ensiná-lo a respeitar a vida, transmitir valores como ética, compromisso, responsabilidade, amor, paz, verdade etc., a escola tem sido um instrumento de reprodução das relações sociais e dos valores predominantes na nossa sociedade, dos quais já fiz algumas referências anteriormente. Basta lembrar o que está acontecendo hoje dentro das escolas no que se refere à questão da violência.
APRENDERMOS COM AS SOCIEDADES TRADICIONAIS
Numa época em que se luta tanto por direitos humanos, direitos das minorias, reconhecimento da diversidade cultural, talvez seja o momento de aprendermos com as sociedades tradicionais - antes que as exterminemos -, que o conhecimento é uma dádiva e que a pedagogia pode ensinar às pessoas que, para que a vida tenha continuidade, é preciso respeitar, reconhecer, receber e usar, sem destruir, as dádivas que a natureza lhes oferece. Essas sociedades sempre deram muita importância à colaboração e ao compartilhamento entre todos os seus membros e ao aprendizado de que todos devem trabalhar pensando na preservação de tudo o que se usufrui para as gerações futuras. A cooperação é entendida como requisito para assegurar a sobrevivência e o bem-estar de todos. Vale lembrar que é também uma das características básicas dos ecossistemas, o que lhes permite a sobrevivência. Assim como os ecossistemas são organismos vivos e estão organizados num padrão rede, as sociedades tradicionais se sentem como um organismo vivo em que não há separação entre os membros desse organismo, nem deles com a natureza. Aprender a compartilhar é considerado mais importante do que a aquisição de qualquer habilidade técnica. A escola pode, sim, ser um instrumento de uma formação mais consciente a respeito da vida e contribuir com a construção de novos valores desde que assuma que seu papel não é ser meramente uma legitimadora dos valores dominantes. Na prática, tal mudança não poderá acontecer introduzindo-se apenas algumas disciplinas no currículo, como por exemplo, Educação Ambiental, Ética etc. Haverá necessidade de uma ruptura na concepção que se tem da vida e de como a escola pode interiorizar e expressar na sua prática essa concepção, ou seja, fazer novas escolhas.
EM HARMONIA COM A NATUREZA - Processo dinâmico e interdependente
Revista - O que significa "pensar como pensa a natureza"?
Iria - O físico Amit Goswami e outros, no livro O Universo autoconsciente: como a consciência cria o mundo material, afirma: A natureza não é uma soma de elementos isolados e estáticos, mas um complicado tecido de eventos, no qual conexões de diferentes espécies se alternam, se sobrepõem ou se combinam de forma dinâmica, em movimento. Essa concepção de natureza exige que se deixe de ver a realidade a partir de objetos separados para percebê-la como um jogo de relações. Para Bateson, a noção de relação deveria ser ensinada às crianças desde pequenas, ou seja, qualquer situação deveria ser definida por suas relações com outras situações e não pelo que seria isoladamente. Como a consciência humana tem um papel fundamental no processo de observação e construção da realidade, a experiência da conexão, da interconexão, de relações, é uma experiência da consciência. Penso que é essa experiência que nos permite fazer a conexão com a Natureza, com os outros seres e com nós mesmos. E é neste sentido que não podemos falar da Natureza sem falar de nós mesmos, o que nos leva a concluir que pensar a partir de relações e conexões é "pensar como pensa a natureza". Provavelmente, se conseguíssemos pensar como pensa a natureza teríamos uma grande chance de viver em harmonia com todas as formas de vida em nosso planeta.
SUSTENTABILIDADE PRESSUPÕE A VIABILIDADE NÃO SÓ DAS GERAÇÕES FUTURAS DE HUMANOS, MAS....
Revista - Quando vamos poder dizer que o mundo está se tornando sustentável? O que o homem precisa fazer para que isso realmente aconteça?
Iria - A construção de uma vida sustentável exige um diálogo entre o Homem e a Natureza e um compromisso com as futuras gerações. Sabemos que os desafios são muitos e que uma transformação global para um mundo sustentável não será fácil, nem se fará de repente e espontaneamente. Penso, como Guattari, que é preciso uma articulação ético-política entre o que ele chama os três registros ecológicos: o meio ambiente, as relações sociais e os indivíduos. Chama essa articulação de Ecosofia, a qual seria capaz de operar uma verdadeira "revolução política, social e cultural", que reorientasse a produção e consumo tanto de bens materiais quanto imateriais. Uma revolução que se daria num processo contínuo de reinvenção, de reconstrução de nossas percepções e práticas, na ótica da responsabilidade e da ética, do amor e da paz. Essa revolução significaria dar espaço para a heterogênese, para a diferença: nos três registros (mental, social e do meio ambiente), tornarmo-nos cada vez mais solidários, mas cada vez mais convivendo e aceitando as diferenças, a diversidade, a biodiversidade. Significaria construir um modo de ser ético e estético, que deverá estar presente em todas as relações: pessoais, sociais e com a Natureza, lembrando que a emergência de novas práticas, num campo, passa a se instaurar em outros campos. A construção de uma vida sustentável permitiria à humanidade retomar a confiança em si mesma, bem como a responsabilidade pelo seu próprio destino e pelo destino do ecossistema planetário.
PEQUENAS MUDANÇAS, GRANDES EFEITOS - A TEORIA DO CAOS
Revista - Pequenas mudanças, grandes efeitos?
Iria - Um dos pressupostos da Teoria do Caos, que nasce na segunda metade do século XX, é de que "pequenas mudanças podem produzir grandes efeitos". Foi uma verdadeira revolução na Ciência, similar à provocada pela Física Quântica e Relatividade. Ou seja, qualquer elemento que se introduza num processo, por mais insignificante que seja, modifica significativamente o processo. Prigogine expressa essa mesma visão ao constatar que a imprevisibilidade, a incerteza, as rupturas, as bifurcações, as pequenas diferenças são entendidas como os caminhos da natureza e são potencialmente construtoras de novas ordens. O caos, portanto, não leva à destruição, mas é (...) o movimento permanente de decomposição de ordens vigentes e composição de novas ordens, em múltiplas direções, imprevisíveis. Isso exige estabelecer um novo diálogo entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes e a aventura exploradora da natureza. O estabelecimento desse diálogo permitiria recuperar o sagrado em nossa vida, entender o sentido de estarmos aqui, o que nos ajudaria a modificar nosso modo de ser e de estar no mundo. Essa pequena mudança traria grandes transformações no sentido de agir não como seres indiferentes ao processo da vida, mas como participantes conscientes, responsáveis e éticos, fazendo escolhas que levem em conta que elas repercutem em nossa vida, na vida dos outros seres humanos, das outras espécies, do planeta, do cosmos inteiro.
Iria Zanoni Gomes - 2011
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